
Águas de Março fecham o verão, águas de Março trazem as enchente das goiabas. E nesse meio de Março, em meio a terremotos e tsunami no Japão, tive a oportunidade de ir pra roça onde moram os pais de uma, velha amiga.
Com desejos de um fogão à lenha, tive a chance de muito mais. Além do fogão à lenha onde se faz a comida do dia a dia, pude ajudar em todo o processo da feitura de uma autêntica goiabada cascão – caipira , como fizeram questão de realçar - : desde limpeza geral, que consiste em lavar, tirar os olhinhos, os bichos, partir e tirar o miolo, depois lavar um a um cada pedaço, até a rapa final do tacho. Depois encher 11 potes de um quilo e mais uns 12 de meio quilo e outros tantos menores já que essa goiabada era para distribuir aos filhos e alguns amigos especiais da família.
Para o doce em talha, em calda: separei as goiabas mais verdes, tirei olhinhos e bichos, tirei o miolo (que foi incorporado à goiabada cascão).Limpei o tacho, com limão e sal como manda o figurino. E levei ao fogo a goiaba, com um pouco de água e açúcar. Cuidei para que a calda ficasse rala e retirei do fogo assim que percebi que estavam cozidas. Coloquei num vidro de boca larga e só coloquei a tampa, depois de bem frio.
Pronto: doses de vitamina C suficientes pra dês classificar o limão, também as vitaminas A e B1 e os sais minerais cálcio, fósforo e ferro, além do sabor incomparável dessa bem brasileira fruta.

Ah, o Tacho! Tacho para ferver água no fogão a lenha. Tacho para fritar costelinha de porco ou refogar couve-mineira. Tacho para escaldar polvilho para o pão de queijo. Tacho para fazer doce de leite e compota de frutas. Tacho grandão para receber caldo de cana que engrossa, vira melado e depois rapadura.
E a rapa do tacho? Rapa que a vó deixa a gente rapar e se lambuzar. Rapa de doce sequinho, queimadinho, no ponto! Rapa do tacho da infância, da roça da vó, da cozinha da vó!
A Rapa do Tacho é isso: é lembrança da cozinha de chão vermelhão e telha escurecida pelo fogão a lenha. É saudade de café quentinho e pau-a-pique no fim das tardes de férias de Julho. É vontade de comer bolinho de chuva, broa de fubá, pão de queijo e pipoca no alpendre da casa da vó com os primos pequenos.
É aqui que vou prosear sobre a mágica de cozinhar, e provar, delícias que fazem a nossa vida valer mais.Tacho de cobre de verdade pede forno a lenha e colher de pau
Com tacho ou sem tacho, se achegue mais e tome um cafezim com a gente, uai!
Os tachos de cobre chegaram ao Brasil junto com as famílias portuguesas. Muito comum na Europa, era o recipiente mais usado para fazer doces em pasta e em pedaços. Nas Casas Grandes, as sinhá ditavam receitas para as iaiás de quitutes açucarados à base de frutas. Hoje, ele está em risco de extinção.
Marmelada, goiaba das e cocadas dulcíssimas atendiam bem ao gosto da época e ganharam o Brasil. Exemplo disso é a tradicionalíssima goiabada cascão feita no Rio de Janeiro, no interior de São Paulo e em Minas Gerais, já falada nesta coluna. Na cidade mineira de São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto, esse e outros doces de frutas feitos no tacho têm pelo menos dois séculos de produção artesanal. Lá, a tradição é tão forte que o modo de fazer os doces (de potes, barras, compotas e cristalizados) ganhou o título de Património Imaterial do Município.
Por todas as cidades de Minas Gerais, aliás, os doces feitos em tacho de cobre são presença marcante. Esse é um dos símbolos da doçaria mineira, que tem personagens memoráveis. Caso de seu Chico Poceiro, de Tira dentes, que faz cajuzinho com amendoim, canudinho com doce de leite e doce de abóbora em pedaços no tacho de cobre; e do Bolota, que prepara doce de leite cremoso e sem muito açúcar no mesmo vilarejo.
No interior de São Paulo, a obra do pintor Pedro Alexandrino dá uma ideia de como se vivia nas fazendas no fim do século 19 e meados do século 20. Entre os quadros do artista está Cozinha na Roça, no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, que retrata o ambiente bucólico e provinciano das fazendas e seus doces, feitos em tachos de cobre, como o de laranja da terra.
Essas são apenas algumas histórias de famílias que vivem (ou viveram) de apreciar e fazer a receita artesanal. Mas estão querendo extinguir o tacho de cobre. No ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu o uso dessas panelas alegando que o azinhavre (substância esverdeada, resultado da oxidação do cobre) pode causar problemas neurológicos.
E como não falar das doce iras da cidade de Goiás Velho, no Estado de Goiás, que foram celebrizadas pela poeta Cora Coralina, autora de deliciosos doces e poemas? No livro escrito por sua filha Vivência Brêtas Tahan, Cora Coralina – Doceira e Poeta (Global Editora/Editora Gaia), tem doce puxa, feito de amendoim e rapadura, ambrósia, doce de leite, de coco, de banana, de cidra, laranjada e mais um monte de gostosuras. Todas feitas no insubstituível tacho de cobre.
Os proprietários do restaurante Dona Lucinha, com endereços em Belo Horizonte e em São Paulo, contestam a decisão. “Não sabemos se avaliaram o método tradicional e criterioso de limpar o cobre, que é feito há tempos”, diz Márcia Clementino Nunes. “O ideal seria ensinar as doce iras a limpar adequadamente seu tacho de cobre e não eliminá-lo.”
Para ela, temos um Património Cultural condenado, sem saber se foi avaliado com a cautela que merece. “A questão que colocaria é se um doce feito em tachos muito bem limpos também foi avaliado.” Sem contar o lado social: como as doce iras do interior, com poucos recursos, vão ter dinheiro para comprar (caras) panelas de aço inox? E do que elas vão viver?
Além da perda considerável em textura e coloração, o preparo de alguns doces pode ser extremamente complicado em outra panela. O de leite feito no tacho, por exemplo, fica bege, bonito e brilhante. No alumínio, torna-se meio acinzentado.
Quando eu era criança me chamavam de “a raspa do tacho”, expressão mineira usada para se referir ao filho caçula. E cresci muito bem comendo as tais receitas que "fazem mal". Tomara que elas não virem lenda e fiquem apenas nos livros e em nossa memória. Estamos correndo o sério risco de perder as tradições seculares em troca de uma cultura pasteurizada, esterilizada, sem sabor e impessoal. Sem colher de pau, sem tacho de cobre, sem queijo de leite cru... Do que mais teremos de abrir mão?

Foto: Cristiano Lopes/Divulgação
Doce de leite feito no tacho de cobre
Doce de leite
Receita extraída do livro Cora Coralina – doceira e poeta (Global Editora/Editora Gaia)
Ingredientes
3 litros de leite
3 xícaras (chá) de açúcar
1 pau de canela ou casca de 1 limão
Modo de preparo
Coloque o leite e o açúcar em um tacho de cobre e leve ao fogo com um pires virado para baixo (no fundo do tacho) para que o leite não derrame. Deixe ferver até que comece a engrossar, retire o pires, coloque o pau de canela e mexa sem parar, até dar a consistência de um creme.
Retire do fogo e disponha em uma compoteira. Sirva gelado. Se preferir o doce em pedaços, deixe mais 20 minutos em fogo baixo, mexendo sempre. Despeje em um tabuleiro para esfriar e corte.
Dica
Para o leite não talhar, coloque uma colher (de café) de bicarbonato, quando o doce começar a engrossar.
Receita de Dona Lucinha para limpar o tacho de cobre:
1 limão
Sal
Sabão em barra
Palha-de-aço
Aqueça o tacho e junte o sal. Depois, corte o limão ao meio. Passe as metades do limão espremendo por todo o vasilhame, limpe todo o tacho até que ele tire todo o azinhavre (camada tóxica esverdeada que se forma no metal resultante de oxidação).
Enxague o tacho sem sabão para tirar todo o azedo e retirar todo o limão (não se pode usar nem palha-de-aço, nem sabão em cima do azedo, senão azinhavre volta rápido). Só então passe o sabão e, com a palha de aço, areie bem, enxague e seque. Leve o tacho seco ao fogão e coloque os ingredientes do doce.
Observação: segundo a Anvisa, esse método caseiro não é cientificamente comprovado na extracção do azinhavre. http://comida.ig.com.br agradecimentos e créditos
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Que bom que veio aqui espero que goste deste cantinho mineiro..